domingo, 13 de julho de 2008

Joao Cabral de Melo Neto

Os Três Mal-Amados


Joaquim:

O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. O amor comeu minha certid�o de idade, minha genealogia, meu endere�o. O amor comeu meus cart�es de visita. O amor veio e comeu todos os pap�is onde eu escrevera meu nome.

O amor comeu minhas roupas, meus len�os, minhas camisas. O amor comeu metros e metros de gravatas. O amor comeu a medida de meus ternos, o n�mero de meus sapatos, o tamanho de meus chap�us. O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos.

O amor comeu meus rem�dios, minhas receitas m�dicas, minhas dietas. Comeu minhas aspirinas, minhas ondas-curtas, meus raios-X. Comeu meus testes mentais, meus exames de urina.

O amor comeu na estante todos os meus livros de poesia. Comeu em meus livros de prosa as cita��es em verso. Comeu no dicion�rio as palavras que poderiam se juntar em versos.

Faminto, o amor devorou os utens�lios de meu uso: pente, navalha, escovas, tesouras de unhas, canivete. Faminto ainda, o amor devorou o uso de meus utens�lios: meus banhos frios, a �pera cantada no banheiro, o aquecedor de �gua de fogo morto mas que parecia uma usina.

O amor comeu as frutas postas sobre a mesa. Bebeu a �gua dos copos e das quartinhas. Comeu o p�o de prop�sito escondido. Bebeu as l�grimas dos olhos que, ningu�m o sabia, estavam cheios de �gua.

O amor voltou para comer os pap�is onde irrefletidamente eu tornara a escrever meu nome.

O amor roeu minha inf�ncia, de dedos sujos de tinta, cabelo caindo nos olhos, botinas nunca engraxadas. O amor roeu o menino esquivo, sempre nos cantos, e que riscava os livros, mordia o l�pis, andava na rua chutando pedras. Roeu as conversas, junto � bomba de gasolina do largo, com os primos que tudo sabiam sobre passarinhos, sobre uma mulher, sobre marcas de autom�vel.

O amor comeu meu Estado e minha cidade. Drenou a �gua morta dos mangues, aboliu a mar�. Comeu os mangues crespos e de folhas duras, comeu o verde �cido das plantas de cana cobrindo os morros regulares, cortados pelas barreiras vermelhas, pelo trenzinho preto, pelas chamin�s. Comeu o cheiro de cana cortada e o cheiro de maresia. Comeu at� essas coisas de que eu desesperava por n�o saber falar delas em verso.

O amor comeu at� os dias ainda n�o anunciados nas folhinhas. Comeu os minutos de adiantamento de meu rel�gio, os anos que as linhas de minha m�o asseguravam. Comeu o futuro grande atleta, o futuro grande poeta. Comeu as futuras viagens em volta da terra, as futuras estantes em volta da sala.

O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e minha noite. Meu inverno e meu ver�o. Comeu meu sil�ncio, minha dor de cabe�a, meu medo da morte.


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